Heterologias

quinta-feira, abril 26, 2007

 

"Não ceder nem um pintelho" *


Agora e na hora do antifascismo, resta-me desejar a todos os meus ilustres camaradas-pavões de ofício cinematográfico, de quem sempre disse horrores, não por empenho missionário mas por mero desabafo de rotina, que consigam, com a queda do miserável regime que os vitimou, expulsar a profunda imbecilidade dos filmes que fizeram e reencontrar, enfim, aquilo que, durante a asfixiante opressão, nunca deram mostras de possuir: dois dedos de imaginação, uma pitada de inteligência, um nadinha de subtileza e delírio, uma nesga de rigor poético.
(...) É preciso afiar, quanto antes, o dente cinematográfico para que o cinema seja capaz de triturar, digerir e cagar realidade. Só assim poderá ter uma função transformadora. Se o cinema não correr mais veloz que a realidade, corre o risco de a subjugar como um pálido reflexo. Estou profundamente convencido que, infelizmente, esse cinema neoparasitário será o cinema dominante na sociedade portuguesa como, aliás, sempre foi, aqui e em toda a parte.
O meu drama é que fui dado como incapaz para todo o serviço militar e não sei muito bem se, disciplinadamente, me devo colocar atrás ou à frente dos canhões. Uns tipos da política já me explicaram que é consoante: sempre atrás, na Metrópole, sempre à frente, nas colónias. Pelo sim, pelo não, acho que vou ficar agachado, que é como sempre estive e hei-de estar. A única diferença é que agora conheço (mal) uns tipos que já se desmarcaram para postos de comando e que, curiosamente, já me pareciam um tanto bichosos e bem nutridos, no regime anterior. Terei de cortar rapidamente relações com essa gentalha que, em moldes mais perigosos e delicados, se prepara para continuar a sugar as desgraçadas peles dos famélicos deste país. Acredito piamente na dialéctica da devoração e na impossibilidade de se construir um país habitável, enquanto houver quem coma e quem é comido.
João César Monteiro, "O Pequeno Papelinho que (...)", O Cinéfilo, nº 33, 25 de Maio de 1974. Republicado no catálogo João César Monteiro, s.l., Cinemateca Portuguesa, s.d. [2005], pp. 514-515

* Entrevista aos Cahiers du Cinéma, nº 541, Dezembro de 1999. Traduzida e republicada em João César Monteiro, s.l., Cinemateca Portuguesa, s.d. [2005], pp. 436-446

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