Num ápice, este país e este tempo, em que a "
comunidade" já é só burocracia europeia, num ápice, retratados, auto-retratados, com o talento, involuntário, de um Rembrandt.
Comecemos por aqui: como a inépcia, este tropeçar do pé na mão e da mão no pé, gera um retrato mais verdadeiro do que aquele que o talento poderia gerar. Dá que pensar. Todas as belas ideias humanistas à volta do talento, do estudo, da dificuldade, da Verdade... Vem um bandalho, trôpego de pés e mãos, sorrisinho alarve na boca, entre a arrogância e o desculpem-me aí qualquer coisinha, vem um borra-botas e vira tudo de pernas para o ar. Está certo, aceito: o tipo queria pintar uma paisagem bucólica e saiu-lhe o retrato do bicharoco que ele é - que ele somos. Mas o que saiu é de uma exactidão, de uma revelação, de uma verdade...
Olhemos, agora, com atenção, o retrato:
A afixação do Símbolo de Acessibilidade não garante que este sítio seja 100% acessível. Atente-se na cobardia, na nossa cobardiazinha mesquinha, pequenina, envergonhadinha. A mesma mensagem, em versão com tomates: não pensem lá que por estar lá a merda do símbolo da acessibilidade isto é acessível. Estes grande tomates gongóricos são mais o que ficou do barroco aos espanhóis aqui do lado: la acesibilidad es solamiente un simbolo que no tiorna accessibeles las essencias, pero, atraviés de las apariencias, nos aproxima de la essencia, coño! O que diz a cobardiazinha burocrática dos tempos de convergência e unanimidade, em tradução tuga é: o símbolo "
não garante" (não é que seja provável, à partida, mas não é garantido) que seja - o quê? Que seja acessível? Não! - não garante que seja "
100% acessível". Tem-te-não-caias. Garante, então, o quê? Nada. Mas também não deixa de assegurar qualquer coisa. Uma tranquilidade, moderna e cosmopolita, inefável, porém. Socrática. Estes pré-socráticos de 99 já profetizavam a segunda vinda do mestre. E, como estas coisas modernas e cosmopolitas requerem uma conclusão, conclui-se que
A utilização deste símbolo demonstra, únicamente, um esforço. E, agora, a imbecilidade alarvar é só nossa: do erro ortográfico da pobreza ignorante que o Senhor Dr. Salazar fez o favor de continuar ao beatificado mártir Carlos, El, Rei e Dom, até ao esforço, ao esforço incomensurável, insuportável, mas louvável. Que esforçados somos. Que ratos parimos.
É
, únicamente, um esforço em aumentar a acessibilidade deste sítio em conformidade com a Resolução do Conselho de Ministros: é só isso, um esforçozito, do género vou ver se consigo chegar à chávena de café que me pediste, sem me levantar, um esforçozito
em cumprir a lei, que, como sabemos, só se cumpre se for mesmo preciso ou tivermos um lugar mesmo merdoso na hierarquia social e poucos padrinhos e nenhumas cunhas.
E eu, envergonhado perante o rigor, sem esforço, da imagem daquele impiedoso espelho, percebi que também tenho "
necessidades especiais" e que me ilumina o horizonte a possibilidade, pouco provável, mas possível, de atrás de um globo inclinado com uma grelha sobreposta, cuja superfície uma fechadura recorta, encontrar a satisfação dessas necessidades: não será 100% certo, ou seguro, ou acessível, mas um dia, num momento feliz, atrás de um desses globos descompensados e presos atrás de uma rede que chave alguma abrirá (pelo menos com uma garantia de 100% - ou que abrirá, mas não a 100%), descobrirei o que me falta aqui.
São, estes, outros amanhãs, mas que também cantam, numa percentagem inferior a cem, compostos em Bruxelas e orquestrados pelo chefe da filarmónica, aqui nos confins.
Rafael Bordalo Pinheiro, Antonio Maria, 1ª série, nº 142, 16 de Fevereiro de 1882